Em curva ascendente, o problema do suicídio mexe fortemente com nossas emoções. Publicações e estudos estatísticos recentes da mídia soam o alarme, ainda que de modo acanhado, acusando o aumento assustador de casos de suicídio no mundo. São dados, não há o que contestar. O que fazer neste quadro? Para além das denúncias e do impacto emocional, é preciso caminhar com o problema e lhe dar atenção. Quem puxa o gatilho é alguém, jovem, adulto ou velho, mas em nome do que isso é feito? Quais os ingredientes desta decisão? Podemos adiantar um deles: ignorância, a mais pura ignorância. De quem se mata também.

Os que convivem com o problema costumam errar o alvo. Ignoram o grave ou tornam grave o que não é. Alguns relatos são impressionantes, detalhando o contraste aberrante entre uma vida aparentemente saudável, carreira promissora e o ato suicida. Realização pessoal combinando com a decisão de colocar um fim na própria vida. Como é possível isso? Essa é a pergunta que todo mundo faz. A perplexidade domina o quadro. E não conseguem entender porque somos “realistas” demais, estamos presos na materialidade das coisas. Dize: ele tinha tudo para viver e não quis. Como pode?!!! Nem nos contou?!!! Acreditam esses que os grandes problemas humanos são decididos na contemplação dos fatos, na exterioridade dos acontecimentos. Ignoram completamente uma parte da vida que nos interpela todo tempo, não obedece a lógica comum e contradiz nossas avaliações.

Óbvio que em todo suicida vive um sofredor e o ato final do suicida é em desespero. Dor e Desespero se juntam numa mistura infernal. Sentimentos que corroem suas forças a ponto de deixá-lo abatido, impossibilitado de encontrar saída para os problemas que o dominam gradativamente a partir do interior. Um ódio surdo se soma silenciosamente a este estado, destruindo e rompendo com todas as fontes de esperança que ainda sobravam. O ódio toma conta e aos poucos dirige sua vida. A vontade incontida de acabar com tudo, se transforma em vontade de acabar com aquilo que está ao seu alcance, seu corpo, sua vida. Os passos desse processo são variáveis de pessoa a pessoa, mas em todos os casos o processo ocorre sem a menor participação da consciência. Nem os mais próximos sabem de nada, nem o problema, nem sua gravidade. O suicida não fala, costuma manter esse desejo em segredo durante anos, muitas vezes. Porque tem medo de falar e ser condenado, por vergonha, ausência de interlocutores ou para não demonstrar qualquer sinal de fraqueza. A ausência de interlocutores leva isolamento, que leva a solidão, pois a pessoa não encontra ninguém com quem compartilhar esse segredo que se torna um peso massacrante.

Uma sombra de silêncio perturbador paira sobre o ambiente onde nasce o suicida. Silêncio amargo, dor de não saber o que fazer dor que reflete desorientação, abandono, solidão e etc. A ideia de se matar passa pela cabeça de muita gente, mas só se implantam alguma. Para infelicidade de todos, o pelotão está aumentando. Esses, que não são poucos, convivem habitualmente num ambiente que não está disposto a escutá-los porque não se conversa sobre essas coisas incômodas. Quando encontram alguém para escutá-lo alguns já estão com sua decisão tomada. Junte-se a isso a gradativa retirada de sentido da vida. Sentido que nos faz falta e que sem ele morremos depressa, morremos mais cedo, logo ou pouco depois. O diabo é que os grandes problemas da vida são resolvidos fora das trocas verbais, longe das palavras, na invisibilidade da experiência subjetiva. Tem hora que as palavras até atrapalham porque estão fora do que deveriam dizer. Parte disso decorre das restrições que a própria cultura nos impõe para a abordagem de determinados temas.

Não, não precisamos inventar um novo vocabulário, novas palavras para tratar de assuntos que não estão liberados para serem conversados num determinado ambiente social cultural. Sem exagero e com cuidado natural precisamos mudar sem pressa certas regras de convivência social para permitir que as conversas atuais possam criar assuntos conversáveis ou abordáveis. Dentre eles o suicídio. A dor e a perplexidade diante do problema podem ser superados pela insistência na criação de uma linguagem vigorosa a respeito do problema, sem imposição. Não é meter palavras onde elas não cabem, mas de ousar explorar as frestas da comunicação em busca de novos horizontes de conversas, fora do ordinário saber.

No entanto, em cada comunidade o progresso social, a construção da riqueza material, por exemplo, será decidido pelo universo da linguagem patrocinada pelo ambiente e expressa nos mais diversos tipos de relacionamentos. O universo verbal disponível para uso, impede, dificulta ou facilita as formas de envolvimento com a realidade e as possibilidades de realização pessoal. Oferece o sentido de determinadas iniciativas. Somos guiados pelas regras próprias do ambiente que determinam os assuntos sobre os quais podemos falar e outros para os quais somos proibidos de tratar e outros sobre os quais somos até incentivados. Não temos registros exatos do que os nossos ÍNDIOS conversavam mais frequentemente entre eles. Não temos noticias de que falavam das suas emoções. Imaginamos que davam bom dia e boa noite entre eles. Das minhas recordações consigo retirar memórias daquilo que nossos pais, ou os adultos daquele tempo, NÃO conversavam. O suicida ignora completamente a importância de tudo isso, e é extremamente pobre quando se trata de revelar algo a esse respeito. Não é ele que vai descobrir ou pesquisar sobre as conversas que lhe faltaram. Ele costuma ficar tão preso aos seus sentimentos negativos que não sabe dizer nada sobre suas escutas e sobre a vida que leva.

Uma das características essenciais das pessoas que querem se matar é a sua pobreza de sentimentos e pobreza verbal. A falta de perspectiva os coloca numa situação precária no exercício da comunicação verbal. De uma coisa sabemos: É no que eles não conversam, não podem e não sabem conversar, que são formadas as condições para a prática suicida.

Um dos elementos essenciais para formação do desejo suicida está no ataque constante e silencioso ao processo de formação de valor. Digamos que o suicida transforma sua vida num exercício compulsivo de inutilizarão do que faz, fez ou fará. Nas suas recordações, vamos encontrar os escombros do passado. Quase sempre é impossível denunciar esse trabalho de destruição das próprias experiências. Sem a menor conversa, não precisa. Matamos mais facilmente sem falar. Por isso é um bom sinal quando alguém anuncia que vai se matar. A conversa pode começar por ai. Se não sabemos quando começa, sabemos como termina. A falta de simpatia pela vida é um traço insistente de uma trajetória silenciosa. Dessa estranha incapacidade de grudar na vida, saem perguntas. Onde, quando, como o desejo de morrer se instalou na sua vida? Existem histórias e mais histórias não contadas de quem não encontrou ninguém para ouvi-lo. De algum incapaz de fazer qualquer depoimento espontâneo sobre si mesmo. Vamos achar que isso não é problema? Onde achar o suicida? Vamos encontrá-lo na ausência de capacidade para criar e manter os dispositivos existenciais do viver. Isso se um dia os criou. Independente do lugar onde se encontra.

Texto de: Amaury Oliveira Tavares - Psicanalista.