Uma característica da neurose obsessiva é o esvaziamento do sujeito, uma tentativa de tamponar os afetos, nunca se entregando a eles mediante o uso de um intenso intelectualismo. O obsessivo intelectualiza para não sentir. Enquanto o histerico padece no corpo, o obsessivo adoece do pensamento. E nesse pensamento adoecido, aparece a obsessão pela verdade, pelo conhecimento mais prático possível da realidade (ABRAHAM, 1970). Esse fator conforme se almeja sustentar neste estudo, trela-se à necessidade de controle que o neurótico obsessivo tem acerca do mundo e das pessoas à sua volta.

Agilulfo é um obcecado pela praticidade e objetividade dos fatos, como se fosse plausível alguém viver em uma relação absolutamente concreta, cartesiana, apartada de qualquer abstração com o mundo. Em outros termos, desde o início do romance e do capítulo em foco, Agilulfo apresenta-se como alguém desumanizado – tanto que as pessoas o veem como algum ente sobrenatural. Nesse ponto, o romancista cubano de expressão italiana faz uso do imaginário medieval, que atribuía aos entes sobrenaturais características tanto físicas quanto metafísicas, como por exemplo: os demônios sobre os quais se diziam voarem e ser causadores da peste; as almas dos mortos, que podiam voltar a habitar suas carcaças e falê-las entrar em movimento ou a relação entre fantasmas  e pontos do espaço ou do tempo, que compririam certa função de fronteira ou de passagem. Desse modo, como Agilulfo mostrava-se desumanizado, não expressava sentimentos ou arroubos humanos, era razoável que os aldeões ou camponeses o vissem como espécie de ente sobrenatural, capaz de atuar no mundo físico, usando força mecânica por conta dessa presença estranha e igualmente material. Essa marca desumana, ate relacionável pelo imaginário ao campo metafísico, representaria a constante busca do cavaleiro de ultrapassar a condição meramente humana. Seu mote era a constante tentativa de não se enxergar como o rochedo da castração ou, pelo menos, de representar que não passa por ela, mesmo inconscientemente, esvaziando-se para ele mesmo e para o outro, mas sempre recorrendo a alguma justificativa racional a ele concernente diante do mundo.

No esforço de não lidar com o erro, com os próprios defeitos, os próprios arroubos e a castração, o obsessivo manifesta-se sem esses problemas, sem sulcos, sem dobras ou furos. Tenta delinear-se como uma linha reta, sem qualquer baixo relevo que lhe revele a possibilidade do furo. “Agilulfo caminha para frente, retilíneo, seguindo o seu caminho. Ele se torna alguém “que é mais que qualquer outro homem” (CALVINO, 2001. P.84-85). Isso chega à assexualização, fazendo-o não comparecer como criatura carnal, mas como um enorme elaborado caleidoscópico intelectualizado. Nesse aspecto, constata-se, também seu formalismo e sua frieza, que o alçasse para fora da condição mortal. O cavaleiro sempre doa a medida fixa de três moedas e, segundo as palavras que Calvino (2001) atribui à sua boca, ele não pode furtar-se ao pedido formal de socorro proveniente de uma dama.

Quando o cavaleiro Bradamante (mulher) pergunta se algum aldeão viu Agilulfo, respondem que não sabem. A paladina, porém, indaga se eles viram um cavalo branco que parecia estar carregando uma armadura com um homem dentro, que seria alguém mais que qualquer outro, por sua intocável perfeição, em existir por meio de uma inexistência. Compreende-se, então, que esse cavaleiro de tão perfeito permanece no plano surreal. Homens, Bradamante já conhecia diversos, de todos os tipos e jeitos variados, mas ela ainda não conhecia um como esse, que não existe. Por isso ela se apaixona por essa armadura com um suposto varão dentro.

Bradamante faz uma reflexão, responde a ela mesma de forma sintética: “Se não está, é exatamente ele”, por isso permanece no existir em meio ao nada (CALVINO,2001,p.87). Compreende-se assim, que Agilulfo não se submete aos terrores limitantes da castração, contudo, todas as ações são analisadas, planejadas e executadas por ele, tudo mensurado apenas pelo critério da excelência.

Cabe salientar, porém, que o cavaleiro inexistente necessita desses feitos de forma repetitiva e de ações embriagantes como a que ele teve em relação a Priscila. Tais ações são os alimentos que o fazem existir e o elixir que corre em suas veias (armadura). Ao finalizar a execução do êxtase de gozo para a mulher de carne, ele volta para seu mundo a desbravar outros terrenos e vencer novos devaneios, ou se perder nesse.

Agilulfo parte em busca da virgem Sofrônia com objetivo de provar sua pureza de corpo. Para tal caçada humana, ele é capaz de andar por pântanos jamais desbravados. Ele vai ao fundo do mar e parte em uma caminhada longa e árdua, para alcançar seu objetivo obsessivo: provar a pureza da mulher religiosa e casta. O controle passa a ser absoluto, caminha entre os monstros marinhos e os derrota com vigor. Visando a não enferrujar o seu maior tesouro (armadura), unta-a com óleo de baleia, arrancado por suas próprias luvas de aço e, por esse caminho, consegue alcançar terra firme; cria e desbrava seu próprio mundo, de forma incansável. O empreender incansável jamais visa a lucro age sempre pela Santa causa.

Assim como Agilulfo, outros cavaleiros também habitavam o mundo da perfeição. CALVINO (2001), em sua obra, um romance-fábula, possibilita uma comunicação com os grandes clássicos da cavalaria. Um exemplo dessa comunicação é elo de devaneios existentes entre os cavaleiros do Santo Graal e Agilulfo, o cavaleiro inexistente. Esse diálogo ocorre por meio de paródia, em que utiliza figuras de estilo extraídas do sarcasmo, humor e sátira. Os cavaleiros do Santo Graal (missão da santa igreja), defensores da divindade do grande Graal, perambulam pelo mesmo pântano (psíquico) de Agilulfo. Tais cavaleiros, com treinos recorrentes, ate atingir a perfeição e o êxtase, praticavam o silêncio do corpo e da alma.

Como prática do rito cerimonial, os cavaleiros habitam as florestas e as desbravam no silêncio profano, executando uma dança macabra entre o profano e o sagrado (expurgar o desejo da carne). Para ser um cavaleiro do graal, o individuo deve ter o poder de dominar a mente e silenciá-la, como, por exemplo, o individuo deve ser capaz de permanecer em baixo de uma arvore por dias, visualizando apenas uma folha, na qual o orvalho cai a cada dia. Outro meio de galgar tal supremacia é treinar o silêncio e permanecer inerte em uma única posição. Ao se tornar um cavaleiro do Santo Graal, o indivíduo deve ser imune à distração e à curiosidade. Deve também suprimir qualquer ânimo de vida que profane sua carne.

Esses cavaleiros que possuem um corpo, devem ter portanto seu elã vital suprimido, ao contrario de Agilulfo, que não possui corpo e existe apenas pela força da fé e cumprimento ao dever da santa causa. Dessa forma, Agilulfo para existir de forma incansável, por meio somente de uma armadura, conserva acesa a fogueira de seu elã vital, por intermédio de práticas recorrentes de ações obsessivas.

Os cavaleiros do Graal mantém o prazer e o gozo mediante o controle do corpo, mente e o silêncio da alma. Eles possuem em meio à carne, sangue quente pulsando em suas veias, já Agilulfo tem apenas a bela e reluzente armadura, e em seu interior, habitam o vazio e a força da fé. Sua existência é calcada exclusivamente em uma imagem distorcida de uma armadura, imagem legitimada pelo outro.

Agilulfo mantém-se em pé com o auxilio de suas ações, patentes e feitos. Ao deparar com a inexistência da virgindade de Sofrônia, viu seu mundo inexistente esvaziar-se. Nada mais é válido: feitos, ações era tudo anulado, tudo fica vazio como fumaça ao vento. Assim, para Agilulfo se dissolver, desaparecer pelas frustrações, o imprevisto torna-se possível. Ao defrontarem com a epifania da carne, Torrismundo e Sofrônia, em meio à orgia do prazer, a carne, gozo, encontra-se perante sua maior frustração.

Em contrapartida, Sofrônia descobre que o homem-homem que a possuiu, Torrismundo, acreditava ser seu filho. Torrismundo, diante desse fato entende ter praticado o incesto. Perante esse dilema, Agilulfo foge sem ao menos ouvir o interrogatório do rei Carlos Magno, no momento em que constataria que a donzela quando salva por ele, ainda era virgem. Averigua, também, a inexistência de incesto, ambos são filhos de mães e pais diferentes, Agilulfo entranha meio a floresta, imerso em seu próprio mundo e incapacidade de lidar com o real, visto que é a defesa da virgindade da donzela que legitima sua existência. Ele se desfaz de seu corpo (armadura), dissolve-se e se transforma em apenas uma gota no mar.

Rambaldo, leal paladino e admirador, sai à procura do cavaleiro, porem encontra apenas uma armadura estendida no chão, posicionada como se fosse um triângulo. Depara também com outras partes desordenadas pelo chão e um bilhete na ponta da lança. Agilulfo transfere seu legado para Rambaldo, deixa o seu maior tesouro, a armadura, que agora estava desprovida de consciência e vontade. Era apenas uma armadura para abrigar um corpo que a desejasse, no caso especifico o de Rambaldo.

Como essa narrativa favorece diversas reflexões e criticas, é importante conhecer o que diz alguns pensadores sobre essa obra.

Bosi (1988) fez uma critica literária, à obra de Cervantes (Dom Quixote De L a Mancha) afirmando que essa obra não apenas faz rir, como também revela um cavaleiro obstinado em seu sonho de justiça apresenta um inesgotável desencontro do cavaleiro com a substância humana, uma convenção entre o ideal e a loucura, parte de uma mesma moeda, uma em cada face. A obra de Cervantes mostra um lado do cavaleiro ainda não visto permitindo vislumbrar a fragilidade, a loucura, fantasia, imaginação extraordinária, além da nobreza de idéias e ações. Tal leitura pode ser deslocada para a obra de Calvino (2001) porem há de salientar que Don Quixote conhece a ética da cavalaria e a realidade de sua imaginação (capacidade de confundir a bacia do barbeiro com o elmo de Mambrino / outro personagem de Don Quixote). Esse vive em meio à inconsciência e certa inconsequência. Já Agilulfo vive uma realidade concreta, é exímio cumpridor das normas, do código de honra e desempenha tudo de um modo que beira a perfeição. Vive em nível de consciência, vontade existir, porém não existe de fato. Elabora hipótese sobre si mesmo uma forma de compensar sua inexistência e um suposto sentimento de menos valia. A obra de Calvino (2001) deixa claro de forma que beira uma comédia, a constatação de obstinação obsessiva do cavaleiro Agilulfo, que possui o estereótipo de um forte guerreiro, imbatível, forjado de um aço jamais visto e tão frágil que se dissolve e se transforma em apenas uma gota de água no oceano.

Para Chiarelli (1999) o desaparecimento de Agilulfo, ao se dissolver transformando-se em uma gota de aguá oceânica, é algo sobrenatural e instigante. Acredita-se, contudo que muitos indivíduos gostariam de galgar o feito de Agilulfo: sucumbir em sua própria inexistência. Há de salientar, porém que Agilulfo se caracteriza por incorporar o desconhecido, ganhando sentido pela sua armadura, extremamente reluzente e imaculada, porém completamente vazia.

Kehl (2003) assegura que uma narrativa desse porte, em que o autor consegue escrever a historia de um personagem que não possui história, favorece uma vasta reflexão. Uns têm corpo e não possuem noção desse fato; outro não o possui, porém tem a ideia de que o possui. Esse feito o faz existir. Outros existem e sucumbem em uma inexistência, como ilustra a historia de um personagem chamado Reinaldo: um jovem com um belo corpo, sem história e sem projeto de futuro, apenas um andarilho.

A história de Reinaldo é basicamente a historia de seu corpo, cansaço, exuberante em sua atividade sexual, desanimado. Possui impulsos tao irrefreáveis quanto passageiros. O oposto de Reinaldo é Agilulfo. Enquanto Reinaldo permanece no nível corporal e vivencia a pulsão do principio do prazer absoluto por meio do corpo, Agilulfo persiste no vazio de sua armadura e não admite os devaneios da orgia, apenas alcança o prazer pela esfera do pensar. Dessa maneira a pulsão é exercida quando o cavaleiro encontra alguém que se deixa fascinar por sua mistificação, e ele pratica a orgia de forma avassaladora.

Já Reinaldo é considerado por Kehl (2003) como um homem sem memória do passado e sem projetos para o futuro. O que o legitima é a sua existência (corpo) e o seu vigor sexual, reconhecido pelas mulheres que ele devora, por meio de seus devaneios e orgia. Esse personagem portanto , vive do corpo para o corpo e da tentativa constante de manter-se. Preenche o vazio de sua existência e abandono, por meio do desempenho sexual. Não possui a consciência do poder de seu corpo, não consegue organizar-se pelo intelecto e não retira do corpo a sua sobrevivência. Não consegue ordenar o seu pensamento para prostituir-se. Dessa forma, permanece perambulando de um lado para o outro, de uma casa para outra. Quando encontra uma mulher que o deseja, ele a possui, mata sua fome de prazer também de alimento e escapa para uma nova caçada inconsciente.

Reinaldo volta a se perder no mundo não por desejo, mas por não conseguir caber em lugar algum, ou, ao, guiar-se pela esfera do pensar, permanecendo em seu mundo incompleto e inconsciente. A autora argumenta que o dilema deste personagem está presente na vida de muitos jovens da atualidade, como exemplo, os jovens de diversas classes sociais (rico, classe media, pobre, C,B,D), que possuem corpos belos, são altivos e se deixam impregnar pela cultura que venera o corpo. Possuem uma  postura de quem não deve e não pede favor para ocupar seu espaço, o que os mantém é a imposição. Tais jovens vivem a erotização do corpo perfeito, atendem a um padrão ditado pelo mídia (sociedade). São homens que, assim como Reinaldo, permanecem no nível do inconsciente, porém possuem corpo. O que não tem é a noção de sua existência, e so se sentem reconhecidos por meio do outro (enquadrando em padrões determinados e aceitos).

De acordo com Chiarelli (1999), Agilulfo é reconhecido por exercer a posição de paladino e sustentar sua armadura (corpo) forte, imponente e altiva. Mesmo que ele tenha um vazio de corpo, é cheio de imponências, etiquetado e considerado, por uma postura e lugar de destaque no exercito do rei Carlos Magno. Assim parte de uma engrenagem, que o devora no vazio de corpo, e o legitima por ser exímio e perfeito no desempenho de seu papel. Dessa forma, prova aos demais que pode existir, de fato, pelo status que o posto lhe confere, por lutar, desbravar, ser fiel as suas convicções somente pela força de vontade e reconhecimento do outro.

Bibliografia –
Cury, Eli Antônio (2012) A neurose obsessiva e sua dinâmica afetiva: uma análise em narrativas de Calvino e Bowles, dissertação de mestrado apresentada à PUC-RS. P. 52 – 57.

Calvino, I. O cavaleiro inexistente. Trad. N. Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1933.

BOSI, A. (1988). The Nature of Prejudice. In: R. BROWN. Prejudice: its social psychology, oxford: Blackwell Publishers, 1998.

CHIARELLI, S. O cavaleiro inexistente de Italo Calvino: Uma alegoria contemporânea. Caxias do Sul: EDUCS. Dissertação. 1999.

Bowles, J. Duas damas bem comportadas. Trad. Lya Luft. Porto Alegre: LPM, 1984.

Texto editado e publicado por: Eli Antônio Cury e Alessandro Borges