Continuando sobre Agilulfo: Ao ver as armaduras dos demais paladinos ao chão, Agilulfo considera-os como indivíduos decompostos em pedaços espalhados. Ele, ao contrário, jamais retira sua armadura linda e imaculada e é possuidor de poder por galgar o cargo de oficial, por meio de feitos ilustres. Tal vantagens, entretanto, não o fazia homem, tampouco feliz. Ele permanece em seu mundo vazio, passeando desafortunado pelas noites, cheio de um vazio de carne e alma, repleto apenas de uma perfeição imperfeita, feita de suas minúcias.

A armadura de Agilulfo representa sua carne tamponando o corpo que não existe. Também não tem vísceras. O único companheiro real de jornada é o seu cavalo, que também não possui calor, sangue, carne, pois não tem ao menos um corpo. O seu companheiro beira a perfeição, anda milhas e milhas de forma incansável, assim como seu dono, Agilulfo. O cavaleiro está tão próximo do cavalo, que cavalga com a cabeça quase grudada ao animal. Aqueles que os vêem indagam: é o cavaleiro que pensa com a cabeça do cavalo ou é o cavalo que pensa pela cabeça do cavaleiro?! Tal fato, porem, não possui relevância, haja vista que ambos são desprovidos de corpo e carne. São prisioneiros do vazio de sua própria existência dentro dessa inexistência de corpo. Os sentimentos e expressões de fadiga ou dor não fazem parte do universo inabitável pelos demais e habitável apenas por Agilulfo e seu cavalo.

Os sentimentos, por certo, não o habitam, pois ele não os demonstra. Aos companheiros de jornada é destinado um tratamento com severa rigidez e muito controle, ausente de sentimentos, como compreensão e benevolência ao outro. Ao menor erro ou negligência cometido o paladino é repreendido por Agilulfo, que o faz de maneira explicativa, dando uma aula minuciosa sobre o descuido. Além disso, reforça que o companheiro deve repetir a tarefa de forma recorrente até beirar a perfeição, certificada pela sua avaliação. Em meio a tudo isso, Agilulfo passava por momentos atormentados em dúvidas. Questionava se deveria se comportar de maneira impositiva perante os subordinados (paladinos), impondo o respeito pela autoridade ou por meio da indiferença.

Essa dúvida o fazia pensativo e o paralisava diante dos demais. O cavaleiro percebia que incomodava a todos. Assim, conseguia murmurar apenas comprimentos inteligíveis, com uma timidez mascarada de soberba. O contrário também podia ocorrer nessa sua forma de se expressar diante dos demais: a soberba podia estar maquiada pela timidez, pois que não se sabe realmente em que nível de angústia Agilulfo está imerso. Sabe-se apenas que ele permeia a escuridão da insegurança por não ser algo que pareça um humano ou simplesmente por ser um fraco mortal. Dessa forma, ele não iria impor o respeito desejado ou merecedor, haja vista que é o oficial mais imponente, garboso e precisamente perfeito no comprimento de seu dever à santa causa.

Por vezes, o cavaleiro Agilulfo era localizado debaixo de um pinheiro, sentado no chão, organizando as pequenas pinhas caídas debaixo da árvore. Com presteza, alinhava-as em formas de figuras geométricas, mais precisamente do triângulo isósceles, (triângulo que tem dois lados iguais). Essa atitude permite pensar que Agilulfo possua dificuldade em lidar com o diferente. Fazia parte do rito empreendido por ele, contar objetos, ordená-los em figuras geométricas e resolver problemas aritméticos ou matemáticos.

Conforme Calvino (2001), se o mundo a sua volta se desfizesse na escuridão da incerteza e na ambiguidade, este personagem não conseguiria refazer-se de um vazio recheado das incertezas. Desse modo Agilulfo permanecia no limbo do incerto, no assombro da decisão. Tais ambivalências provocavam nele um sentimento de ser o pior de sua espécie (haja vista que ele é uma espécie única). Para não se dissolver em si mesmo, ele utiliza como estratégia a contagem de objetos, como as pinhas, folhas, pedras, lanças, o que lhe surgisse pela frente, ou se põe a organizar as coisas de maneira precisa com formas, por exemplo, de quadrados ou pirâmides. Dedicar-se aos afazeres exatos propicia-lhe vencer o mal-estar, absorver o desprazer, a inquietude e a apatia. Por meio desses atos, tenta retomar a lucidez.

Rambaldo, um paladino a serviço do exército que tinha Agilulfo como oficial, observa seu comandante de longe, quando este pratica seus ritos de baixo da árvore de pinheira, organizando e reorganizando de forma precisa as pinhas e folhas ao chão. O paladino reflete sobre tudo que vira mediante rituais, combinações, fórmulas. Tal fato o jogava no limbo de uma angústia profunda, porém ambivalente, por não fazer parte desse ritual. Percebe, contudo, que está inserido nesse mundo insano dos rituais, pois se alistara à tropa do rei Carlos Magno, para vingar a morte do pai. Dessa forma, emerge em sua mente que tal fato o faz parecido com o cavaleiro Agilulfo, por ser obstinado como ele. Então, Rambaldo joga-se ao chão em prantos, por estar imerso na insanidade obsessiva da vingança, (CALVINO, 2001).

Agilulfo, por sua vez, ao presenciar situações parecidas com a descrita anteriormente e vividas por Rambaldo, remete-se a um mundo de calma e segurança muito grande. Dessa forma, apodera-se de um sentimento que o leva a um mundo imune as angústias e sentimentos, tais como a fraqueza humana em expressar a sua própria dor.

Deve se lembrar que Agilulfo possui o extremo controle da mente, corpo e alma. A rigidez, o poder, o controle permeiam todas as situações de sua existência, portanto, aos seus olhos, é inconcebível tolerar a covardia dos demais, cabe-lhe permanecer em um terreno de superioridade e proteção, diante dos outros. (CALVINO,2001).

Perante a problemática de Rambaldo, Agilulfo indaga a cerca da necessidade do sono, já que para ele importante é estar sempre desperto dia e noite. Sua armadura está sempre a serviço, nunca descansa, não dentro e nem fora, está em todo lugar ou em lugar nenhum. Tirar e pôr não faz sentido para ele, sua presteza é insana, indolente, obstinada e recorrente.

Agilulfo afigura-se diante de suas ações em sua inexistência do corpo, carne, sangue e alma. Configura-se pela pulsão de morte, convertida em um princípio do prazer absoluto e recorrente na busca incessante de novos ritos que complementam seu vazio, em uma tentativa de manter a sua altivez onipotente.

A ilusão da onipotência escravisa a alma desse sem alma, e o escravisa em sua busca constante pela perfeição, procurando inutilmente responder com excelência. O cavaleiro submente-se à devida obediência, a uma solidão voluntária à santa causa do rei Carlos Magno, a uma condição heterônioma, que pode ser considerada uma busca por uma “lei paterna”, que , em lugar de render eficácia, o encurrala e transborda…

Bibliografia –
Cury, Eli Antônio (2012) A neurose obsessiva e sua dinâmica afetiva: uma análise em narrativas de Calvino e Bowles, dissertação de mestrado apresentada à PUC-RS. P. 42 – 44.

Calvino, I. O cavaleiro inexistente. Trad. N. Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1933.

Bowles, J. Duas damas bem comportadas. Trad. Lya Luft. Porto Alegre: LPM, 1984.

Texto editado e publicado por: Eli Antônio Cury e Alessandro Borges